Foto da Thom Bradley
O tribunal, porém, decidiu pela transmissão dos arquivos digitais, uma vez que, em seu entendimento: (i) o “patrimônio digital” da pessoa falecida, por ter conteúdo afetivo e econômico, pode integrar o espólio e ser partilhado; (ii) no caso, não haveria violação aos direitos da personalidade, principalmente porque inexistiria disposição que impedisse o acesso dos bens digitais pela família e (iii) a Apple não teria manifestado resistência ao pedido.
Os primeiros são bens de inestimável valor econômico (perfis em redes sociais, e-mails, postagens de vídeos, fotos e opiniões pessoais) [3] — verdadeiro exercício dos direitos da personalidade em ambiente digitalizado, enquanto os segundos aproximam-se de uma categoria sui generis, em que há a concomitância de aspectos existenciais e aspectos patrimoniais [4], como os perfis monetizados em redes sociais.
A leitura das categorias de bens sob a ótica clássica não é mais suficiente para solucionar as novas questões de direito que se descortinam na “Sociedade em Rede” [5]. Nesse contexto, em razão da virada tecnológica no campo do Direito, há de se revisitar desde os conceitos dos institutos até as formas como tratamos os conflitos [6], inclusive, no âmbito do Direito das Sucessões [7].
Em decorrência dos impactos gerados pelas novas tecnologias, a Subcomissão de Direito Digital, da qual um dos coautores fez parte, apresentou anteprojeto de reforma do Código Civil, no último dia 17 de abril. O anteprojeto contou com um capítulo próprio denominado “Patrimônio Digital”, definido como o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencentes a um indivíduo ou entidade, existentes em formato digital.
Primeiro, é importante rememorar que no ordenamento jurídico brasileiro são transmitidas aos herdeiros apenas as relações jurídicas não personalíssimas e patrimoniais [8], regra esta que, por óbvio, permanecerá inalterada com a Reforma projetada, pois os bens digitais dotados de valor econômico serão sucedidos de acordo com as normas já vigentes.
Em relação aos bens digitais existenciais, ou personalíssimos, a posição majoritária da doutrina acertadamente converge para, a princípio, entender pela sua intransmissibilidade entendimento este adotado na reforma do Código Civil — em sentido oposto ao que decidiu o TJ-SP na recente decisão aqui mencionada. A mera constatação de que tais bens não possuem, prima facie, conteúdo economicamente aferível, já indicaria de per si a intransmissibilidade desses bens, em observância às regras sucessórias brasileiras.
Além disso, independentemente de qual teoria acerca do fim dos direitos da personalidade se adote, o resultado — a intransmissibilidade — será o mesmo. Isto porque, caso se entenda, como defende a teoria clássica, que os direitos da personalidade são extintos com a morte do titular [10] ou que os direitos da personalidade possuem uma pós-eficácia, ou melhor, confere-se uma esfera de liberdade processual aos herdeiros na defesa do interesse no que se refira à “figura do morto” [11], não haverá transmissão.
Ainda que não haja direito da personalidade após a morte, não se nega a pós-eficácia de certos direitos, sobretudo a expectativa de maior privacidade em relação ao acesso de determinados conteúdos após a morte, de modo que havia um interesse legítimo em vida, e surge um interesse legítimo dos herdeiros de que não haja nenhuma violação às informações privadas ali constantes.
Uma eventual transmissibilidade do patrimônio digital do falecido também poderia acarretar violações indesejadas ao direito de privacidade de terceiros, que teriam, sem justos motivos, intimidades expostas. É que o bem digital pode envolver conteúdo privado não somente do autor da herança, mas também de terceiros que, independentemente de sua vontade, poderiam ser atingidos com a transmissão do patrimônio aos herdeiros do falecido, com quem, por exemplo, trocou mensagens em plataformas digitais.
É prevista também a possibilidade de que o autor da herança disponha em testamento sobre os dados e informações contidas em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso. Embora não haja regulação específica sobre os bens digitais — o que é solucionado pela proposta -, essa já é a regra atualmente, pois o artigo 1.857, §2º, CC/02, autoriza a disposição testamentária de caráter não patrimonial. A proposta vai ainda além, estabelecendo que o compartilhamento de senhas ou de outras formas para acesso a contas pessoais serão equiparados a disposições contratuais ou testamentárias expressas para fins de acesso dos sucessores, desde que devidamente comprovados.
Com a finalidade de preservar a intimidade dos envolvidos, as mensagens privadas do falecido armazenadas em ambiente virtual não poderão ser acessadas pelos herdeiros, em qualquer das categorias de bens patrimoniais digitais, exceto se houver expressa disposição de última vontade nesse sentido, e, de toda maneira, preservada a intimidade de terceiros.
Ficará permitido, caso aprovada a proposta, o acesso pelo herdeiro às mensagens privadas da conta do falecido, desde que por decisão judicial e comprovada a sua necessidade, para os fins exclusivos autorizados pela sentença e resguardando o direito à intimidade e privacidade de terceiros. É importante salientar que, presentes motivos justos e razoáveis, mediante decisão judicial, haverá a transmissibilidade de bens existenciais – o que rechaça a equivocada ideia de intransmissibilidade irrestrita.
Se não houver declaração de vontade do titular da conta digital, ficará autorizado que os sucessores, se desejarem, requeiram a exclusão da conta ou sua conversão em memorial, o que afasta o argumento [12] de que a intransmissibilidade de bens existenciais tornaria as plataformas digitais, sobretudo as big techs, herdeiras universais dos bens digitais deixados pelo falecido.
Situação não conflitante com as disposições da reforma do CC envolve os “Termos de Uso” sobre transmissibilidade das redes sociais do Facebook e do Instagram, desempenhando a função de verdadeiros testamentos digitais [13].
O segundo caminho surge na hipótese de o usuário não realizar nenhuma indicação do destino de sua conta em caso de morte, situação que ensejará a transformação automática do perfil em memorial. Nesse caso, se não houver uma indicação prévia de um contato herdeiro, a conta não será gerenciada postumamente.
Não há possibilidade de que o titular, por meio da própria plataforma, estabeleça qual destino gostaria de dar para a conta, isto é, que solicite, por exemplo, a exclusão, a transformação em memorial ou a concessão de poderes a terceiro para tomada de decisão.
Isso quer dizer, portanto, que a herança digital em nenhuma hipótese será transferida para a plataforma digital, mas tão somente aos herdeiros, se for o caso (autorização pelo falecido, respeitado os direitos de terceiros, ou decisão judicial no caso de necessidade).
Voltando à recente decisão do TJ-SP, como não houve manifestação expressa da autora da herança, tampouco demonstração de necessidade, a conclusão, caso aplicadas as regras sugeridas pelo anteprojeto de reforma do Código, seria oposta à que chegou o tribunal. É dizer, como a titular não dispôs expressamente, tampouco há situação excepcional, não poderia ser autorizada a transferência do “ID Apple” aos seus pais.
Enfim, não há dúvidas de que o tema é permeado por dificuldades e obstáculos que ainda envolvem um longo caminho. Ainda assim, parece clara a importância de regulação sobre a matéria, como sugerido no anteprojeto de reforma, principalmente ao impedir a transmissão irrestrita de bens digitais existenciais sem que tenha sido autorizado pelo titular, sob pena de violação ao direito à intimidade do próprio titular e de terceiros.
[1] SP. Tribunal de Justiça. Ap. 1017379-58.2022.8.26.0068; Rel. Carlos Alberto de Salles; 3ª C. de Direito Privado; DJ: 26/04/2024.
[2] Como exemplo, há as criptomoedas, milhas aéreas, livros e músicas digitais. HONORATO, G.; LEAL, L. T.. Propostas para a regulação da herança digital no direito brasileiro. In: Direito Civil e tecnologia. Fórum, 2020. p. 538.
[3] ZAMPIER, B.. Bens digitais. Foco, 2021.
[4] Ibidem.
[5] CASTELLS, M.. The rise of the network society. Oxford/West Sussex, 2010.
[6] NUNES, D.; PAOLINELLI, C.. Acesso à Justiça e Virada Tecnológica no Sistema de Justiça brasileiro In:. Direito Processual e Tecnologia. Juspodivm, 2020. NUNES, D.. Virada tecnológica no direito processual: fusão de conhecimentos para geração de uma nova justiça centrada no ser humano. RePro. n. 344, out. 2023.
[7] Em 2019, Flávio Tartuce já tecia considerações sobre a exigência de se pensar em novos delineamentos sobre a sucessão em razão das novas tecnologias. TARTUCE, F. Herança Digital e Sucessão Legítima. Primeiras Reflexões. RJLB, 2019.
[8] FARIAS, C.; ROSENVALD, N.. Curso de Direito Civil: Sucessões. JusPodivm. 2017..
[9] VALADARES, MGM; COELHO, TCMF. Aspectos processuais relacionados à herança digital. In: Herança Digital. Foco, 2021.
[10] ROSA, CP; RODRIGUES, MA. Inventário e Partilha. JusPodivm, 2021.
[11] NAVES, BTO; SÁ, MF de. Direitos da Personalidade. Arraes, 2017.
[13] ZAMPIER, B.. Bens Digitais. cit, p. 178.
[14] FACEBOOK. O que acontecerá com a minha conta do Facebook se eu falecer? Disponível em: https://www.facebook.com/help/103897939701143.
[15] Ibidem.
[16] INSTAGRAM. Solicitação de remoção de pessoa falecida: https://help.instagram.com/contact/1474899482730688.
[17] INSTAGRAM. Solicitar a transformação de uma conta em memorial.: https://help.instagram.com/contact/452224988254813
[18] FARIAS, C; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil: cit
[19] LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Saraiva, 2011.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-mai-20/reforma-do-codigo-civil-e-a-heranca-digital/